Seria natural que estando o final do ano próximo, aproveitasse para fazer um balanço de 2022 ou abordasse os tópicos que vão estar em foco em 2023. Teremos tempo para isso e pareceu-me mais interessante falar de outro tema que nos vai acompanhar durante os próximos anos – a aplicação da tecnologia à saúde.
Os mais tecnológicos dirão que na área da saúde já temos a tecnologia em tudo quanto é sitio. Bem… se se entender tecnologia pela utilização de computadores, comunicação via email, utilização de aplicações onde se agrega alguma informação das pessoas ou a utilização de algum equipamento de robótica de última geração, então já temos alguma tecnologia implementada.
Mas estamos longe de se poder considerar que o setor da saúde está a acompanhar outras indústrias na adoção da 4ª revolução industrial.
4ª revolução industrial? Sim, está a acontecer a grande velocidade. E à semelhança de outros setores como a agricultura ou construção, também a saúde continua a “lutar” contra a implementação desta ou como se diz na gíria “a empurrar com a barriga”.
Voltemos um pouco atrás para relembrar como chegamos da 1ª até à 4ª revolução industrial. A 1ª revolução industrial deu-se no século XVIII quando a utilização da energia a vapor permitiu a deslocação de mercadorias para grandes distâncias em menos horas. No século 19 a descoberta da eletricidade levou à produção em linha de montagem (maior produção com menor custo), sendo Henry Ford o grande embaixador desta era. Nos anos 70, subiu-se um nível, promovendo a automação da produção através de controlo remoto e programação, ou seja, sem intervenção humana. Caracterizada como 3ª Revolução Industrial.
E hoje? Hoje estamos a viver e a fazer parte da 4ª revolução industrial. Digamos que é um upgrade à 3ª revolução industrial, na medida em que estamos a utilizar os sistemas de produção que já existem e já utilizam a tecnologia de computação mas agora estamos a expandi-los e a interligá-los em rede. Resumindo, há uma fusão entre produção, informação e comunicação.
Posto isto, fica claro que na saúde a maturidade digital é pobre. Irónico não é? Todos sabemos que a adoção de tecnologia avançada nos poderia levar mais longe, garantir melhor assistência e acesso a cuidados (por exemplo, evitar deslocações necessárias a serviços de saúde que podem ser resolvidos nos prestadores de saúde dos cuidados primários), ganhar tempo para desempenhar tarefas mais importantes, reduzir custos, aumentar qualidade e podia continuar.
Uma palavra define a principal razão pela qual se continua a “empurrar com a barriga” a adoção de tecnologia avançada na saúde: DADOS! Aquilo a que o The Economist chamou, em 2017, “the new oil” (o novo petróleo). Dados são valiosos. Serão ainda mais no futuro. Serão tanto mais valiosos se forem trabalhados. Já agora, bem trabalhos. Até porque ter uma pull com muitas linhas de dados só por si, vale o mesmo que zero.
O setor da saúde é riquíssimo em dados, o que à partida parece um contrassenso. Então porque não os utilizamos, partilhando-os, para potenciar os resultados para todos? Sim, disse partilhar. É isso que se quer dizer quando todos falam em interoperabilidade, afinal é mais eloquente e não choca tanto porque a maioria não sabe o significado. Identifico 3 razões principais que respondem à questão que fiz: segurança, vantagem competitiva/fragmentação e desumanização . Se na primeira temos um desafio, mais cedo ou mais tarde vamos encontrar solução e já estivemos mais longe, nas restantes vai depender da visão de negócio de futuro que os líderes têm. Olhemos para cada uma em separado.
Segurança
É verdade que a complexidade dos dados de saúde não se compara com outros dados que possamos considerar tradicionais (cartões de fidelização, emails,…). É igualmente verdade que as deficiências de segurança que afetam os dados à escala mundial também é uma realidade. Basta estar atento aos ataques informáticos a instituições como TAP, INEM, ministérios governamentais, entre outros.
Ainda nesta questão, temos a complexidade que é conjugar na mesma plataforma várias entidades que fazem parte do setor da saúde: hospitais, clínicas, centros de saúde/USF, farmácias, seguradoras e as próprias pessoas.
Aliada às questões anteriores temos os parcos avanços na vontade de legislar, não só a nível nacional ou europeu mas também mundial.
Caracterizei esta questão da segurança como um desafio porque acredito que a necessidade nos vai obrigar a encontrar soluções rapidamente. Na verdade já há solução. E se até à pouco tempo a tecnologia blockchain não parecia dar as garantia necessárias, o cenário mudou. Quem esteve mais atento ao que se falou no web summit 2022 percebeu que o desenvolvimento e adoção desta tecnologia de segurança de dados vai ser rápida.
Depois disso, dependerá da vontade de dos intervenientes e do legislador.
Vantagem competitiva/fragmentação
Já falei anteriormente do valor dos dados e também dos vários agentes que atuam no setor da saúde. É um setor altamente fragmentado. Todos trabalham para um fim comum: a resolver os problemas das pessoas que precisam de cuidados, mas todos trabalham no seu “cantinho” e só de ouvir falar em “partilhar/dividir para reinar” têm uma indisposição.
À semelhança do que acontece com a adoção da tecnologia, também no setor da saúde os intervenientes têm uma dificuldade gigante em perceber que o futuro passa por fazer parte de ecossistemas. Isto é tema para outro artigo, mas muito resumidamente passa por criar sinergias com os outros atores que estão à nossa volta para crescer e ganhar mais.
A maioria dos líderes continua a “olhar para o seu umbigo” e a não entender que no mundo atual e futuro, as sinergias são o garante do sucesso e sobrevivência. Nunca é demais lembrar Clarice Lispector - “Quem caminha sozinho pode até chegar mais rápido, mas quele que vai acompanhado, com certeza vai mais longe”.
Desumanização
Não raras vezes ouço que as máquinas vão substituir as pessoas. Que a tecnologia vai trazer desemprego. E outras tantas coisas semelhantes. Não partilho desta opinião. Aliás, em janeiro deste ano escrevi a propósito do tema o artigo “O futuro da farmácia será humano”. E quem diz da farmácia diz dos restantes setores.
A máquina pode e deve substituir os humanos no que faz melhor e mais rápido que os humanos. Tarefas altamente repetitivas que só desmotivam quem as faz e não trazem valor acrescentado ao serviço que se presta ao cliente não precisam de ser realizadas por pessoas. Então o que fazemos à pessoas?
As pessoas ganham tempo para fazer aquilo que realmente importa na prestação de um serviço: dispensar e investir tempo na atenção ao cliente. Esta é a chave para um serviço de excelência que fideliza. Até porque o que sabemos do consumidor atual, diz-nos que o serviço é o que o faz um cliente ser fiel a um produto/serviço.
Deixo uma questão para refletir:
Se a tecnologia provoca desemprego e cada vez mais estamos a implementar tecnologia, porque estamos a sofrer a maior crise de recurso humanos e há falta de pessoas para trabalhar? Em todas as áreas, sem exceção.
Como em tudo, estar na vanguarda pode ser doloroso. Desbravar caminho, fazer os outros entender que o futuro passa por uma determinada solução pode ser muito desafiante e ao mesmo tempo desmotivador, o chamado “partir pedra”.
Mas lá à frente, quando todos somos obrigados a implementar estas soluções, aqueles que já passaram pelo processo estarão muito mais preparados e limitam-se a surfar a onda. Com os ganhos evidentes, afinal já se prepararam antes para a “avalanche” que a maioria estará a viver nessa altura.
Há soluções que pela sua dimensão, por mais que as empurremos com a barriga, um dia nos vão cair no colo. E a 4ª Revolução Industrial na saúde é uma delas. Como nos explicou Darwin, a seleção natural não perdoa e os que aceitarem e estiverem preparados vão prosseguir. Os outros ficam pelo caminho.
Em qual dos grupos quer estar?
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