A renovação da prescrição crónica vai em frente nas farmácias. E agora?
- Vânia Serra
- 9 de nov. de 2022
- 5 min de leitura
E eis que 6 anos após a entrega de um documento com 30 recomendações para o Uso Responsável do Medicamento, pela Ordem dos Farmacêuticos (OF), ao governo que, à data, era encabeçado pelo atual primeiro-ministro António Costa, temos fumo branco. É caso para dizer: mais vale tarde do que nunca!
Recuemos então até 2016. Nesta altura e impulsionada pelo sucesso do que já acontecia em outros países, desde 2009 que a renovação de prescrição crónica acontece em alguns estados do USA ou o exemplo de Inglaterra, a OF recomendava ao governo a “criação do serviço farmacêutico de renovação da prescrição dos medicamentos dos doentes crónicos controlados, em estreita colaboração com o médico”.
Quando consultamos o Relatório do orçamento de estado para 2023, mais concretamente na área de politicas e medidas de saúde, promover o acesso ao medicamento e à inovação será um dos objetivos. Mais concretamente “2) Promover um mecanismo de renovação automática da prescrição para os doentes crónicos, numa interação SNS/farmácias de oficina”.
A questão que coloco é: que condições temos diferentes entre 2016 e 2022 para que esta medida tenha finalmente ido para a frente? E muito bem, diga-se!
Em primeiro lugar, vamos ao que se mantém:
A dificuldade de acesso ao médico de família já existia, tendo até piorado aos dias de hoje;
As urgências hospitalares já estavam sobrelotadas, maioritariamente com situações de gravidade leve (com pulseira verde e azul, de acordo com a triagem de Manchester);
Os recursos humanos do SNS já estavam em esforço;
Os farmacêuticos, enquanto especialistas do medicamente, já disponibilizavam na farmácia a consulta de Acompanhamento Farmacoterapêutico que visa o acompanhamento de pessoas que apesar de estarem a tomar medicação crónica, não estão controladas;
As farmácias já figuravam como o local onde as pessoas se dirigem em primeiro lugar quando tinham alguma afeção, pela confiança que têm no profissional de saúde farmacêutico.
Então, o que é que mudou para, passados 6 anos, esta medida avançar?Aconteceu a tempestade perfeita: uma pandemia (COVID-19), o desinvestimento aliado à falta de planeamento e organização do SNS e a escassez e exaustão dos recursos humanos, neste caso focamos os médicos.
A pandemia COVID-19 veio mostrar, uma vez mais, o quanto os farmacêuticos e as farmácias estão disponíveis para contribuir para a melhoria do Sistema de Saúde Português. Sim, referi-me ao sistema que contempla todos os agentes de saúde (públicos e privados). Infelizmente, os sucessivos governos agem, maioritariamente, para os SNS e esquecem o sistema. O apoio inequívoco das farmácias, através da realização dos TRag e a entrada, ainda que tardia, na plataforma dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), foi o ponto de viragem. Farmacêuticos e médicos começaram a ter um local comum para partilha de informação. Comunicação limitada? Sim, mas existente, ainda que unidirecional. E, neste caso, já é um avanço considerável.
Agravada pelo esforço durante o período pandémico, a exaustão dos médicos e restante profissionais de saúde, principalmente os da especialidade de Medicina Geral e Familiar – a que está mais em foco na renovação de medicação crónica -, aliada ao turnover da classe fez com que os médicos não tenham as ferramentas ao seu dispor para acompanhar os doentes.
Será por isso que, ao contrário de fevereiro de 2020, o Colégio da Especialidade de Medicina Geral e Familiar, da Ordem dos Médicos, não emitiu um parecer quanto à renovação de receituário crónico?
Na realidade, sempre me lembro da renovação da medicação crónica resultante do pedido feito ao administrativo, sem que o doente esteja na sua presença do médico, ser uma realidade. Eu mesma, nos anos 2000, o fazia com a medicação para a minha avó. E hoje não é diferente.
Quanto do tempo gasto pelo médico, a realizar desenfreadamente a renovação de medicação crónica, pode ser traduzido no aumento de consultas de acompanhamento dos utentes que necessitam? Certamente que muito. A questão é que só se abre mão de uma tarefa que pode realizada, para outro profissional de saúde igualmente competente para a função, quando se reconhece que ou se redireciona a atuação de medicina geral ou familiar ou toda a organização do SNS pretendida não será possível. Para que existam menos urgências (que não são urgências que carecem de tratamento hospitalar) é preciso que os cuidados primários estejam mais disponíveis para a sua função: diagnosticar e acompanhar.
Tornar oficial o que já se faz oficiosamente. É disso que se trata. Com vantagens para todos. E no final, ganha o doente crónico.
Quantas vezes ouvimos na farmácia “Dra. preciso do medicamento para a tensão que acabou ontem. Não tenho receita mas depois vou pedir ao médico”? Pois é, inúmeras vezes. Portanto, na verdade, a renovação da medicação crónica já acontece na farmácia, pelos farmacêuticos. Só tem outro nome: venda suspensa. Até porque o doente quando pede a receita médica, como não fala com o médico, este não sabe se esta é para obtenção da medicação ou regularização de uma venda suspensa.
E AGORA QUE É OFICIAL? Vai a farmácia manter o mesmo procedimento?
A resposta é NÃO! Não deve, pelo menos.
Em declarações posteriores à aprovação do orçamento na generalidade, o mistro da saúde disse qualquer coisa como “(…) porque um medicamento crónico para uma doença crónica pode não ser uma prescrição crónica”. E está coberto de razão. Além de ministro da saúde é médico e sabe, como ninguém, do que fala.
Por isso, esta proposta inscrita no orçamento do estado para 2023 é uma nova oportunidade para as farmácias e para os farmacêuticos!
A farmácia tem, finalmente, uma passadeira estendida para a implementação do Serviço de Acompanhamento Farmacoterapêutico remunerado. É que há uma responsabilidade, consideravelmente maior, em revalidar a prescrição, oficialmente. Quem faz rastreios à população, sabe que tomar medicação para doenças crónicas não é sinónimo de doenças controladas. Por isso, a farmácia tem uma oportunidade única para fazer o acompanhamento do utente e tornar-se, o Farmacêutico de família.
Já para os farmacêuticos, é a oportunidade de ir além da dispensa de medicamentos ao balcão. É a possibilidade de intervir no acompanhamento dos utentes, fazer promoção para a saúde, estimular a adesão à terapêutica. Ser farmacêutico!
Como sempre, aproveitar as oportunidades depende dos intervenientes e da forma como se olha para a farmácia e, acima de tudo, para o futuro. E o futuro da farmácia será, garantidamente, muito diferente do que temos agora.
A ideia de que o mais importante é o presente e o futuro logo se vê é discutível, até porque se sabe que tudo não passa de um custo de oportunidade.
E, acreditem, nada é mais “caro” do que desperdiçar uma oportunidade (clara!) que nos é dada. Se não agora, lá à frente veremos quanto nos custou!
Quanto mais não seja, a passagem desta oportunidade para outros profissionais de saúde que estão sempre à espreita e que cujos órgãos que os tutelam fazem bastante mais ruido e têm maior poder junto das entidades governativas.
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